27 de dezembro de 2016

Se eu fosse eu - Clarice Lispector


Quando eu não sei onde guardei um papel importante e a procura revela-se inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase "se eu fosse eu", que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar, diria melhor SENTIR. 


E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser movida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas e mudavam inteiramente de vida. 

Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua, porque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei. 

Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo que é meu e confiaria o futuro ao futuro. 

"Se eu fosse eu" parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido. 

No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teriamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos emfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando, porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais.

18 de junho de 2010

Corridinho - Adélia Prado

O amor quer abraçar e não pode.

A multidão em volta,
com seus olhos cediços,
põe caco de vidro no muro
para o amor desistir.

O amor usa o correio,
o correio trapaceia,
a carta não chega,
o amor fica sem saber se é ou não é.

O amor pega o cavalo,
desembarca do trem,
chega na porta cansado
de tanto caminhar a pé.

Fala a palavra açucena,
pede água, bebe café,
dorme na sua presença,
chupa bala de hortelã.

Tudo manha, truque, engenho:
é descuidar, o amor te pega,
te come, te molha todo.

Mas água o amor não é.

17 de dezembro de 2009

Casa pré-fabricada


Abre os teus armários
Eu estou a te esperar
para ver deitar o sol
sob os teus braços castos
Cobre a culpa vã
até amanhã eu vou ficar
e fazer do teu sorriso um abrigo

Canta que é no canto que eu vou chegar
Canta o teu encanto que é pra me encantar
Canta para mim
qualquer coisa assim sobre você
Que explique a minha paz
Tristeza nunca mais

Vale o meu pranto
que esse canto em solidão
Nessa espera o mundo gira em linhas tortas
Abre essa janela
primavera quer entrar
pra fazer da nossa voz uma só nota.

Canto que é de canto que eu vou chegar
Canto e toco um canto que é pra te encantar
Canto para mim qualquer coisa assim sobre você
que explique a minha paz
Tristeza nunca mais...

14 de novembro de 2009

O Amor Bate na Aorta - C. Drummont


(...)
O amor bate na porta, amor bate na aorta,
Fui abrir e me constipei.
(...)
Amor é bicho instruído.
Olha: o amor pulou o muro, o amor subiu na árvore em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue que corre do corpo andrógeno.
Essa ferida, meu bem
, às vezes não sara nunca, às vezes sara amanhã.

5 de novembro de 2009

Todo mundo



*roubado de algum lugar que não lembro, perdoe-me o autor/fotógrafo

29 de outubro de 2009

Não é mais da Tati

"Porque pra ter você por perto um pouco, eu tive que não querer mais ter você por perto pra sempre."

Não é mais da Naa

"E eu vou socar meu coração até ele diminuir. Só pra você nunca se assustar com o tamanho."

21 de outubro de 2009

Em paz


Tem razão o poeta: “O amor é a coisa mais triste quando se desfaz.” É triste por causa do retrato: porque ele faz lembrar uma felicidade que se teve e que não se tem mais. O retrato é uma sepultura.

Rubem Alves in “O AMOR QUE ACENDE A LUA – Por que a rosa não mais floresce?”


16 de outubro de 2009

Milton Nascimento

Porque tem hora que eu sei que só ele me entende.

Veja esta canção
eu sei que só sei amar
e é este o meu destino
eu só sei amar, amar, amar
sou assim desde menino
quando a vida era um rio e eu nem sabia do mar
quando meu sonho futuro já era um dia cantar
eu sei que só sei amar
e o que mais quero e preciso é sempre, sempre
te amar

veja esta canção que existe dentro de mim
veja esta canção que existe dentro de mim
veja esta canção que existe dentro de mim


6 de outubro de 2009

A Idade da Razão - Sartre

- Recusas?
- Recuso - disse Mathieu desesperado. - Recuso.
Pensava: "Veio oferecer-me o que tem de melhor!"
Acrescentou:
- Não é coisa definitiva. Mais tarde...
Brunet deu de ombros.
- Mais tarde? Se você aguarda uma revelação interior para escolher, você arrisca esperar muito. Você pensa que eu estava convencido quando entrei para o Partido? A convicção forma-se...
Mathieu sorriu tristemente.
- Eu sei. Põe-te de joelhos e terás fé. Talvez você tenha razão. Mas eu, eu quero acreditar primeiro.
- Naturalmente - disse Brunet com impaciência. - Vocês são todos iguais, vocês, os intelectuais. Tudo desmorona, os fuzis vão disparar sozinhos e vocês, serenos, reivindicam o direito de ser convecidos. Ah! se ao menos você pudesse ver-se com os meus olhos, compreenderia que não se pode perder tempo.
- E então? Sim, o tempo passa, e daí?
Brunet deu uma palmada de indignação na coxa.
- Muito bem! Finges lamentar o teu ceticismo, mas não te desfazes dele. É teu conforto moral. Quando o atacam, a ele te apegas avidamente.